Publicado originalmente na Cinética em Dezembro de 2010.
Políticas da forma
Em seu primeiro longa, Macelo Lordello dá prosseguimento a um trabalho bastante particular de mapeamento da violência introjetada no cotidiano, e manifesta por vias menos pensadas pelo cinema brasileiro. N. 27 (2008), seu brilhante curta anterior, usava o ambiente escolar para pensar manifestações de constrangimento gerada pela violência social, muito antes de o bullying se tornar a discussão da rodada. Vigias, seu primeiro longa, é um documentário que já se explica em seu título: Lordello e equipe acompanham a rotina de homens que trabalham como guardiões de prédio de classe média em Recife. O filme alterna de uma personagem à outra como partes integrantes de uma mesma noite, com alguns depoimentos que acompanham a predominante observação.
Por sua simplicidade e contenção visual, é bastante provável que Vigias passe sem que suas operações sejam percebidas. Toda a construção do filme – das estratégias de aproximação à montagem, passando por uma fotografia bastante discreta de Ivo Lopes Araújo – tenta reconstituir um certo ritmo da noite, no qual os pequenos acontecimentos são amplificados pelo silêncio das ruas, e que depende essencialmente que filme e espectador respirem em um mesmo compasso. Com a percepção aguçada pela imersão no espaço e no tempo do filme, Vigias demanda atenção justamente ao que se esgueira em sua própria escuridão, mas que é dado a ver justamente por esse estado desperto de quem se coloca em vigília.
Em primeiro lugar, há um comentário formal: Vigias atravessa a noite para chegar ao dia, e ambos os momentos são pensados metaforicamente. Se o filme se coloca de forma crítica à obsessão com segurança de Vigias, é expressivo que a chegada do dia não interrompa o filme, mas os leve a acompanhar suas personagens no trajeto do trabalho para a casa. Noite e dia são pensados como oposições simbólicas de escuridão e clareza, e o filme faz justamente esse trajeto de um para outro, um movimento de uma sensibilidade à outra, do ocultamento à iluminação. Se em dado momento um breve encontro da equipe com uma das administradoras de um prédio deixa claro que a equipe só tivera acesso por a responsável ser amiga da mãe de uma das pessoas da equipe, isso é contrastado ao eloquentíssimo plano final, em que a equipe de filmagem chega à casa de um dos vigias que, deixando a porta aberta, vai buscar sua esposa para apresentá-la a seus novos amigos. Mais do que um elogio bucólico e canalha à simplicidade, Vigias opõe dois extremos de comportamento para se fazer perguntas essenciais: o que deu errado? O que a obsessão com segurança garante? O quanto ela aproxima e o quanto ela separa as pessoas? Como ela influencia nossa rotina e, principalmente, as pessoas que somos social e internamente?
Tais perguntas não serão respondidas, mas é especialmente interessante ver como Marcelo Lordello as levanta sem nunca violentar o filme com sua arbitrariedade. Se N. 27 era um filme admirável muito por suas questões não superarem sua vontade de cinema – por, ao contrário, motivá-la –Vigias cria um sistema parecido entre tema e cinema para que ambos cheguem ao espectador com maior força. Em dado momento, quando o filme passa enfim da noite para o dia, temos um plano de um rádio – um elemento que conecta as personagens do filme em um belo falso raccord – em que o câmera faz uma correção de íris. O plano parece um tanto deslocado, mas é interessante pensá-lo como ilustração do tipo de estratégia cinematográfica que o diretor usa para transmitir coisas muito concretas – no caso, a necessidade de se “ajustar” o olhar (e a perspectiva) às mudanças de luminosidades e de realidades dentro do filme.
As operações cinematográficas levantam questões que extrapolam o cinema: vemos um dos porteiros fazendo sua ronda por meio das diversas câmeras de vigilância que monitoram a movimentação interna de um prédio, mas em vez de isso ser reduzido a um mero jogo de linguagem, o recurso abala a estrutura social que coloca todo aquele aparato em serviço: vigiar é ser vigiado, e a relação entre empregador e empregado é também uma maneira de manter o outro por perto, sob o julgamento de nossos olhos. Embora não seja tão desnorteante quanto N. 27 (questão de natureza, antes de ser de realização), Vigias leva o cinema pernambucano a um lugar que ele vem aspirando há algum tempo com diversos filmes, mas que até então escorria pelas frestas deixadas entre matéria e forma (como sempre, conceitos indissociáveis, mesmo que muitas vezes tratados como opostos: não há matéria sem forma): ser um filme verdadeiramente político.